February 04, 2009

Profissão de fé

Nos últimos meses tenho sido levado a refletir sobre a minha fé, minha fé quanto às coisas da vida, e minha fé transcendental. Reiteradamente, as conversas que demandam tais reflexões acabam num debate apaixonado: eu pela paixão que a minha forma de aderência às coisas evocam, e os meus interlocutores pelas paixões de suas crenças encarnadas no curso de suas vidas. Em outras palavras, as paixões que me motivam contrastam com as crenças daqueles amigos e conhecidos que comigo conversam, o que conduz o bate papo para o campo do estranhamento das coisas corriqueiras de nossas vidas, antes irrefletidas.

Desde criança aprendemos orações que devem ser repetidas todas as noites, antes de dormir. Com o tempo essas orações viram práticas religiosas rotineiras para confortar as agruras do viver e a abstinência dos prazeres, pecaminosos. O belo nos é ensinado na escola e pelos nossos pais. Somos familiarizados com o belo e o feio comum a todos. Aprendemos a nos sensibilizar com coisas bonitas e feias cujo juízo é compartilhado. O sabor das coisas também passa por um processo impositivo do que é bom e ruim. O bom e o ruim comunitário tende a ser assimilado pelo infante, que orientará o sabor que sentirá o jovem aprendiz do novo que se revelará. A fé num deus que está aí, ou mesmo, que sempre esteve, é imediatamente inculcado e, vez ou outra, evocado para estabelecer os limites do que se pode ou não fazer, sob pena de danação eterna. Tudo isso é apresentado de forma tão familiar que esquecemos a curiosidade reveladora que toma uma criança, desvela o mundo e constrange os Pais. Esquecemos do prazer em descobrir coisas novas e nos surpreender com elas. Passamos a olhar a vida que se reinventa dia-após-dia com os olhos treinados por uma infância e adolescência de coisas prontas, que nos são ofertadas como As Coisas, por excelência.

Tenho me devotado, ultimamente, aos sabores dessas descobertas e repensado a estética do trivial, o sabor das coisas doces, e a fé na verdade suprema. Cada vez mais tenho refutado os valores que me ensinaram serem os valores últimos que provêem sentido à vida, valores que uma vez abraçados garantirão a salvação. A minha fé mudou, e continuará mudando. A minha fé no mundo e no transcendental cada vez mais está movendo-se do campo do acreditar para o campo do que apraz.

Não seria inusitado afirmar que eu não creio, somente, nas formas perfeitas e harmônicas das coisas que as pessoas reconhecem como as formas superiores, em detrimento daquelas que lhes solicitam uma postura de asco e inferioridade. Eu gosto de ser seduzido pelas coisas que aparecem prazerosas e sedutoras para alguém, das coisas que têm sentido para estilos de vidas inebriados com a beleza do incomum. Eu também gosto de não gostar das coisas que me sugerem coisas triviais e de sentido raso. Se não gostar de algo me faz sentir prazer, eu gosto disso, contanto que esse não-gostar me permita não julgar o gosto do outro, à luz do que me mobiliza.

Eu não creio nas coisas boas e más, nos comportamentos bons e maus, por natureza. Eu gosto de me comportar rumo ao que me dará prazer. Eu gosto das pessoas que não precisam amar, como se amar fosse uma obrigação que atribui o sentido final do existir, uma vez encontrado magicamente. Eu gosto de amar aquilo que me motiva, aquilo que me faz agir e que me dá prazer fazê-lo. Eu não creio que negar as coisas que me aprazem, em nome de uma aparência, daquilo que me torno para que os outros me vejam seja a única forma de felicidade. Eu gosto da felicidade da solidão e da celebração com os outros. Eu gosto da felicidade de conhecer lugares, pessoas, cores, sabores e novas formas de me deixar seduzir e apaixonar. Uma única forma de amar, de sedução e de apaixonar é pouco para um mundo inteiro de coisas, formas e pessoas.

Eu não creio nas coisas transcendentes que atribuem o que é verdade e oferece o parâmetro do que deve ser a vida. Eu não creio nos valores supremos que dão o verdadeiro prazer e torna os outros involuídos e(ou) coitados. Eu gosto das formas criativas que emergem da vida de milhões de vidas que vivem juntas, num mundo inteiro. Todos podem sentir prazer com coisas diferentes e completamente iguais, à medida do prazer que dá a cada um e não do que foi dito ser O Prazer.

Eu não creio em Deus. Eu creio em todos os Deuses Acreditados pelas pessoas. Eu gosto de crer nos Deuses Acreditados que não qualificam as pessoas através de uma natureza transcendental, mas qualifica através das vidas possíveis, das vidas que não negam as formas de ser dos outros. Eu não acredito no deus da punição vindoura. Eu gosto de crer no Deus Acreditado por cada um, que permite viver a plenitude da vida a ser vivida com a diversidade de outros.

1 comment:

Fernanda Furtado said...

Muri, é lindo. Não tenho outras palavras. Só vou elogiar a evolução da sua forma de expressar o que você pensa e sente - elogio esse que eu não canso de fazer.